quarta-feira, 11 de junho de 2014

Malévola (2014)

*contém spoilers

Eu sou meio tiete da Angelina Jolie por que sim por que a mulher é uma diva. Enfrentar toda mídia sedenta e trazer um problema de saúde seríssimo à tona, quando ela fez a mastectomia preventiva por ter pretensão genética ao câncer de mama (tipo de câncer que mais atinge mulheres com previsões que apontam 1,66 milhões de doentes até o ano que vem no mundo todo) para conscientizar as pessoas sobre a doença, não deve ter sido fácil. Além disso, ela adotou uma penca de crianças em países pobres, quase sempre com objetivo de chamar atenção para algum conflito ou problema ocorrendo naquela área. É muito engajada em trabalhos humanitários e na defesa de direitos humanos como embaixadora da ONU e seu projeto mais recente é de combate à violência sexual contra mulheres em áreas de guerra. E ela ainda deixa os filhos se vestirem como querem, sem dar a mínima para padrões de gênero, como a Shiloh, que é frequentemente flagrada “vestida de menino”. Além de ser a eterna Lara Croft. Agora me digam: como não amar essa mulher?
Assim, Malévola (2014) além de protagonizado por uma atriz maneira, eu adoro filmes da Disney e adoro uma história de princesa. Estava esperando ansiosamente essa produção desde que foi anunciada a alguns anos.  Apesar de não ter sido muito incentiva a curtir contos de fadas por que minha mãe sempre evitou que eu os visse, me apresentando outras coisas (até hoje morro de amores pelo O Rei Leão, 1994), pois sempre achou que esse discurso de mulheres passivas esperando príncipe encantado para salvá-las era nocivo para garotas. Sabia mamãe... As mais antigas, aquelas da década de 1940, 1950 mais datadas possíveis, cheias de amor romântico e que ficam o filme inteiro paradinhas, ou fazendo tarefas domésticas enquanto esperam ser salvas, eu nunca vi até hoje. Sempre gostei das mais “moderninhas”, Mulan, Pocahontas etc. Mas esqueçam de tudo que você sabe sobre contos de fadas e vem comigo.
Nesse filme toda ação acontece envolta de uma releitura do filme de 1959 contado pela perspectiva da vilã, como seu título já sugere. Ele explica o porquê de uma fada que vivia em um reino encantado com outros seres mágicos ter se tornado a bruxa má que vemos no antigo longa. Maleficent tinha lindas asas e era a fada mais poderosa desse reino que coabitava outro, o reino dos humanos. Enquanto o primeiro representa a natureza e a vida em harmonia, onde todos cooperam e não há rei ou rainha, o outro, dos humanos, é o reino da ganância e da violência (qualquer oposição entre masculinidade e feminilidades clássicas aqui não deve ser mera coincidência). Ela conhece e se apaixona pelo jovem Stefan, humano que anseia ocupar o lugar ao trono de um rei vingativo que quer a cabeça da Malévola por ser incapaz de dominar seu reino mágico. Assim, ele a entorpece e com ela desacorda a viola, arrancando suas asas e traindo-a perversamente para se tornar soberano.
Essa é uma alegoria evidente a um estupro. A maneira como ela sai da situação despedaçada e vai ficando cada vez mais sombria depois disso, só deixa essa tese mais forte. Ela teve seu corpo violado, invadido, foi traída e humilhada. Mas sobrevive para vingar-se. E daí o resto da história já conhecemos: as três fadas boas, a maldição, a roca, o beijo de amor verdadeiro, descobrimos de onde vem o corvo e a muralha de espinhos também. O que é MUITO legal.
Esse conceito de bruxa é bem antigo, remonta tempos de inquisição, quando as mulheres que detinha a sabedoria relacionada à natureza eram acusadas de bruxaria e queimadas em fogueiras pela Igreja Católica. Sabedoria essa, que era usada muitas vezes para ajudar outras mulheres.  São recorrentes casos de condenadas por prescreverem ervas que amenizavam as dores do parto, por exemplo. E assim, até o século passado, se observarmos nos filmes clássicos da Disney, a figura da bruxa é sempre uma mulher que de alguma forma deseja poder, em contraste com uma princesa delicada e submissa que só deseja... casar. E mulher querendo poder só pode ser bruxa, velha e má, que saí do padrão feminino dócil e merece sempre ser punida no final. De preferência com a morte.
Esse filme coroa um movimento desconstrução da bruxa que eu já venho observando desde Valente (2012), onde a mulher que controla a magia não era má... só meio atrapalhada. Maleficent é má, mas tem motivos para sua amargura e sua vingança, e, além disso, consegue reverter seus sentimentos, e o amor por Aurora a redime. O estereótipo da bruxa que odeia outra mulher passou da validade e a Disney já estava demorando a perceber isso. A personagem interpretada por Jolie é totalmente complexa e multifacetada, o que muitas mulheres vem cobrando da indústria do cinema a muito tempo (outra que tá demorando pra cair a ficha). Depois da maldição, Aurora vai ser criada no meio da floresta por três fadas atrapalhadas, de modo a ficar bem longe das rocas, e Malévola vai lá se divertir com a situação, saborear a vingança, mas acaba desenvolvendo forte afeto pela menina que acredita ser a fada sem asas sua fada madrinha, sabe de nada inocente!  E elas ficam amicíssimas e vão viver juntas no reino mágico, mas a maldição é implacável e quando ela faz 16 anos pum!, desenvolve narcolepsia... não pera...
E Maleficent que não acredita em amor verdadeiro, pois acha ser ela mesma prova de que ele não existe, leva à adormecida um príncipe que a moça tinha conhecido na floresta antes de cair no sono, como sua última esperança de desfazer o feitiço. Ele beija Aurora e nada, até que super arrependida por ter se deixado levar pela raiva e vingança, jogando aquela maldição na princesa, a fada beija a moça e pum! ela acorda. Amor verdadeiro entre elas, entre mulheres, depois de Frozen (2013) tá na moda gente! Que maravilha! É muito importante, principalmente num filme cujo público alvo é infantil, mostrar que amor verdadeiro é possível entre qualquer um, não só entre homem e mulher.
O filme é fantástico porque além de quebrar o amor verdadeiro em pedacinhos pequenininhos, por que não é o príncipe o centro do filme (como no de 1959, em que Aurora passa o filme inteiro... dormindo), coloca a forte amizade entre duas mulheres, numa sociedade que incentiva rivalidade feminina por qualquer motivo (principalmente brigando por atenção masculina) e é protagonizado por uma personagem mulher profundamente multifacetada, humana e complexa, que traz um mistura de sentimos incríveis de amor, transformação e superação!
É disso que o cinema precisa, é um filme escrito por uma mulher, sobre uma mulher que fala de conflitos que afetam mulheres. E para os produtores que ficam de mimimi alimentando a ideia de que filme com protagonista mulher não vende: Maleficent lidera as bilheterias nos EUA e só na estreia já arrecadou R$ 70 milhões de dólares. E por enquanto R$ 158,9 milhões lá e pelo menos R$ 624 milhões pelo mundo. 

terça-feira, 10 de junho de 2014

O direito do terceiro mundo

Era primavera. Havia muitas árvores em Washington d.c. Isso foi algo que me surpreendeu nos Estados Unidos, eles têm mais árvores do que nós. Também tem mais asfalto, mas devo confessar que as árvores chamam mais atenção.
Eu estava aproveitando a cerveja. Como não podia beber no país, eu me certificava de aproveitar ao máximo toda a vez que podia tomar cerveja. No caso, era um almoço oferecido pela vizinha filipina da avó de uma amiga minha, que estava hospedando a mim e mais 6 estudantes para o Spring Break. Destes, só sua neta e mais uma garota eram estadunidenses (estadunidense sim, porque nada justifica negar nossa americanidade).
Eram duas mesas, uma composta só por jovens e outra com a avó da amiga, o marido da vizinha filipina que oferecia o almoço e uma grande amiga minha brasileira com uma cara de espanto. Eu já estava um pouco tonto por causa da cerveja que usava para empurrar a comida que tinha tanto carinho quanto faltava gosto. Naquele dia descobri que não sou chegado a cozinha filipina.
Quando eu sentei o senhor repetiu para mim o que tinha acabado de perguntar para minha amiga.
“Você acha justo esses imigrantes imundos virem aqui e usar o dinheiro dos meus impostos para a educação e a saúde dos filhos deles?”
Sim, todos os estadunidenses da casa eram republicanos. Aliás, o terreno em que estávamos pertencia (há muito tempo atrás) a fazendo do próprio George Washington. Aquele homem tinha servido alguma força armada dos EUA por muito tempo. Talvez tenha sido assim que houvesse conhecido sua gentil esposa filipina. A avó de minha amiga só concordava com tudo o que ele dizia. Eu não sei se eles não consideravam intercambistas imigrantes também ou era uma indireta de “caiam fora da minha casa”. Fico com a primeira opção.
O que estava diante de mim era o argumento mais ignorante e xenófobo contra a imigração de sul-americanos, centro-americanos e mexicanos nos Estados Unidos. A lembrança de que eu estava na casa dele sumiu. Também esqueci que o nome da cerveja que estávamos tomando era tão imigrante como os “mexicanos imundos” de quem ele não gostava. Sorri e respondi.
“Acho justo sim. Porque não é o seu dinheiro. Enquanto o senhor servia o exército, seu país ajudava a várias ditaduras serem implantadas nos países de origem desses “imigrantes”. Essas ditaduras favoreceram seu país economicamente, e muito! Meu país só se livrou de uma dívida daquela época há poucos anos atrás. Então, se eles e os pais deles é que trabalhavam para o lucro do seu país que pagava seu salário, oras, na verdade você deve muito a eles. E foram os seus pais que usaram os impostos deles para sua educação e saúde. Então sim, eu acho justo.”
Minha amiga deu um suspiro de alívio.  O senhor que já deve ter assassinado muitos durante sua vida começou a falar diretamente com nossa anfitriã sobre como “esses jovens de hoje em dia...” e eu continuei bebendo a cerveja com nome de imigrante ladrão com um grande sorriso no rosto.